Para revista Pátio, 2004
Lembro-me com certa angústia das aulas de Artes que tive nas primeiras séries do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Abelardo José Nácul no vilarejo de São João da Urtiga, RS. Eu não conseguia entender o significado do termo “desenho livre”. No entanto, a cada aula de Artes, tinha a esperança de conseguir interpretar aquele termo “livre”, que era combinado com a palavra desenho. Ter liberdade para fazer um desenho era bom, mas por onde eu deveria começar?
Logo percebi que, o fato da professora nos deixar desenhar “livremente”, não era camaradagem, tão pouco significava confiança total na produção de seus alunos. Hoje, eu imagino que as aulas de Artes eram tão desesperadoras para ela quanto foram para mim. Não só durante aquele ano, mas, também, durante os outros anos que se sucederam.
Acredito que minha professora, na década de 70, não sabia que não se cria de modo aleatório e, para materializar uma idéia, necessita-se de um esforço específico. Que a apresentação de propostas para a reflexão e o olhar atento do educador são princípios fundamentais para um real aprendizado sobre fatos, conceitos, procedimentos e atitudes.
Os objetivos das aulas de Artes não eram claros, portanto, não propiciavam referências e perspectivas necessárias à percepção criativa das coisas do mundo. Aulas mais objetivas e dinâmicas, certamente, teriam me proporcionado a liberdade que eu buscava. O medo não se justificava pela indecisão quanto à temática a ser abordada, mas pela falta de sincronia entre o pensamento pedagógico e a ação educativa.
Por sorte, aos oito anos, naquele vilarejo de 500 habitantes, chegaram para mim tintas de tecido.Depois de receber este material, recebi também riscos de bordado para pintar panos de prato. Em alguns dias, ficou claro que não era apenas o “desenho livre” que sufocava, porque também os moldes prontos representavam uma outra forma de prisão à criatividade. Não entendia porque eu deveria pintar tantos morangos, maçãs e flores.
Naquela época, vendedores ambulantes circulavam pelo vilarejo com reproduções de obras acadêmicas. Eu fiquei encantada com aquelas figuras e questionei minha professora:“Como era possível pintar daquele jeito?”. Como representar sombras e luzes e até o reflexo de um menino na água? A mesma cor azul era pintada com diferentes tonalidades. O menino que olhava o lago estava triste. E o pintor? Ele estava feliz quando pintava? Por que o artista pintou um menino solitário olhando seu próprio reflexo na água e eu deveria pintar flores e frutas? Minha professora não soube responder e, para me acalmar, sugeriu que eu também pintasse um menino olhando a água.
Um dia ganhei o livro “Quero ser pintor” e, por meio dele, comecei a organizar minhas experiências com as cores, temperando-as com tons e nuanças. Lendo o livro eu me sentia uma fazedora de cores, relacionando tons e explorando a superfície do pano ou papel. No livro, um menino que queria ser pintor também não era compreendido pelo professor, nem pelo pai. Depois de algum tempo, ele foi para uma escola de Artes e encontrou um professor que sabia lhe encaminhar no processo de criação. Ao falar sobre sua experiência, o menino, personagem do livro, dividia com o leitor a descoberta das cores.
Atualmente, ao ensinar arte, eu busco uma linha de trabalho que me distancie dos equívocos de meus professores do Ensino Fundamental.Tomo como exemplo outros professores que, de maneira positiva, ensinaram-me a ouvir, sentir, pensar, descobrir, exprimir e fazer arte, partindo da observação e do estudo dos elementos da natureza e da cultura. A análise, a reflexão, a transformação consciente e reflexiva me indicaram o caminho da liberdade, pelo qual, um dia, a professora não soube me conduzir.
No capítulo referente a mutações e à prática, no livro “Inquietações e mudanças no Ensino da Arte”, (BARBOSA, 2002:14) Ana Mãe Barbosa cita que em sua experiência tem visto que “a chamada livre-expressão, e o espontaneísmo apenas não basta porque o mundo de hoje e a Arte de hoje exigem um leitor informado e um produtor consciente. Não é aceitável hoje confundir improvisação com criatividade.”
“As referências pessoais, fundadas nas experiências individuais, e as referências culturais, nascidas no convívio com a cultura de seu entorno, direcionam o poetizar, fruir, conhecer Arte, levando-nos a fabricar sentidos, significações que atribuímos ao que estamos observando. Quanto mais referências tivermos, maiores e diferentes as possibilidades e perspectivas para análises e interpretações”. (MARTINS e outros, 1998:22)
No ano de 1999,como professora de educação artística na Escola Particular “O Metropolitano – Instituto de Educação e Cultura”, participei de uma ação que envolveu direção, professores de diferentes áreas de conhecimento, pais e a comunidade. Naquele ano, a cidade de Campo Grande comemorava seu centenário e a Escola O Metropolitano decidiu realizar um projeto relacionado a este tema, já que,os meios de comunicação falavam sobre festas, desfiles e comemorações. Enfim, desenvolver um projeto unindo dados culturais e históricos de um povo seria proporcionar aos alunos uma participação envolvente e dinâmica, visto que, muitos deles eram descendentes de imigrantes.
Durante uma reunião discutiu-se primeiramente a atitude interdisciplinar, concordando com as idéias da educadora Ivani C. A. Fazenda, citada no texto escrito por Ana Amália Barbosa(2000:106). A atitude indisciplinar é”...uma atitude de reciprocidade que impele ao diálogo _ ao diálogo com pares anônimos ou consigo mesmo _ atitude de humildade diante da limitação do próprio saber, atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes, atitude de desafio _ desafio perante o novo, desafio em redimensionar o velho _ Atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e com as pessoas neles envolvidos, atitudes, pois, de compromisso em construir sempre da melhor forma possível, atitude de responsabilidade mas, sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, enfim de vida.”
O professor de história desenvolveu, então, uma pesquisa sobre os desbravadores e a chegada dos primeiros imigrantes estrangeiros. Os alunos estabeleceram relações com a cultura e os costumes de diversas partes do mundo, com as pequenas construções que foram substituídas por edifícios, com o antigo que deu lugar ao moderno, com a facilidade e evolução dos meios de transportes e de comunicação.
A professora de geografia trabalhou com gráficos e com mapas da cidade e de outros países, localizando a distância percorrida pelos imigrantes, as características iniciais da construção das ruas e avenidas e as alterações sofridas.
A professora de português realizou produções de textos tendo como suporte, as entrevistas realizadas com comerciantes da Av. Calógeras, com os familiares dos alunos, com contos e poesias.
Com as informações já obtidas por estas áreas de conhecimento, alunos de quinta e sexta série, iniciaram uma pesquisa de campo com o enfoque nas aulas de artes. Localizaram os pontos dos primeiros imigrantes, comerciantes estrangeiros: libaneses, árabes, sírios e armênios, que fixaram-se na cidade em 1914. A pintura gasta, e a poluição visual impedia apreciar e identificar os traços da arquitetura dos anos 30, das três quadras da Avenida Calógeras, palco onde se desencadearam nossas entrevistas.
De volta a sala de aula, reunimos as entrevistas e os registros fotográficos: das casas e dos entrevistados.Entre outros olhares, iniciamos um debate referente a uma possível revitalização de um ponto histórico, ora transformado em uma área empobrecida e esquecida. Também fez parte do trabalho o resgate de fotos de comemorações, carnavais, desfiles cívicos, casamentos etc. Os alunos, em grupos, desenhavam as fachadas, discutiam estilos e projetavam cores, discutiam combinações que historicamente fossem coerentes. Observávamos os intervalos que existiam entre as casas, a simetria das janelas, o desenho das fechaduras, a perspectiva da rua, as sombras projetadas pelas árvores, a textura da calçada e para cada elemento novo, mais idéias surgiam para novos desenhos.
Não foi difícil convencer os proprietários de que as fachadas ficariam mais interessantes ao receber nova pintura. Mobilizamos então os pais, o comércio local e a comunidade para doação das tintas.
Durante um sábado e um domingo, o corpo de bombeiros, os guardas de trânsito e os pais responsabilizaram-se pela segurança de 90 adolescentes que acompanhados por todos os professores e direção da escola, pintaram as fachadas daquelas pequenas e modestas casas da Av. Calógeras. O envolvimento com os moradores e comerciantes locais foi total. Eles ofereciam, água, seguravam as escadas, e alguns, encorajados pela energia do grupo, ensaiavam pinceladas nas paredes e portas.
Este mutirão despertou nos alunos um grande interesse pelo estudo da cidade, da cor e de estilos arquitetônicos. Certamente, não tínhamos a pretensão de revitalizar profissionalmente o local, mas conseguimos chamar a atenção de historiadores e vereadores, sobre a importância de se preservar a história e a identidade local.
Assim, este projeto, baseado inicialmente em pesquisas e entrevistas, estimulou e inspirou ações que superaram nossas expectativas, tamanho foi o interesse das pessoas envolvidas. A reflexão, o senso crítico e a contextualização deram novos sentidos à imagens, até então, conhecidas mas, que não haviam sido observadas e discutidas.Os alunos, por sua vez, consideraram-se agentes e cidadãos atuantes, contando e fazendo parte da história de uma cidade.
BARBOSA, Ana Mae Barbosa(org) Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo, Cortez, 2002.p.14.
BARBOSA, Ana Amália. 2002.Interdisciplinaridade.In: BARBOSA, Ana Mae Barbosa(org) Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo, Cortez, 2002.p.106.
MARTINS, MIRIAN Celeste e outros. Didática do ensino de arte: a língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FDT,1998. p.22.