Ruas por Sara Grubert, 2013

Ana Luisa Ruas nasceu em 26 de junho 1966, em Machadinho, RS. Em 1996 veio a Campo Grande para visitar a amiga Maria Inez Soares e, depois de alguns meses, decidiu fixar residência por perceber que Campo Grande seria a “cidade das oportunidades”. Ficou encantada com as grandes áreas a céu aberto e a luz natural do lugar; para ela, o azul do céu da cidade é “nosso maior monumento”. Decidiu então ficar e oferecer sua contribuição para o desenvolvimento da arte no Estado de Mato Grosso do Sul. A artista formou-se em Artes Visuais como bacharel e arte-educadora, em 1988, em Passo Fundo, RS. Frequentou o curso de pós-graduação em Artes Visuais na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) como aluna especial, em 1989, e fez especialização em Arte e Novas Tecnologias na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2003. Trabalhou como professora de artes em escolas de Campo Grande e atualmente oferece diversas atividades em seu ateliê.

 
O repertório: de máquinas de costura ao leite em pó...

Ao adentrar o ateliê de Ana Ruas e observá-lo, vê se de tudo um pouco, o universo da artista, com sua história pessoal, humana. Misturam-se diversas referências, nas artes plásticas, dentre algumas que citou, estão Regina Silveira e Leda Catunda, entre muitos outros que ela não gostaria de perder. Todos os bons artistas são alimento para seu olhar, assim como os livros: são muitos, livros sobre arte urbana, livros de artes, livros variados.            Chamam nossa atenção também, vários objetos, como máquinas antigas, de seus pais, de suas avós, de seus tios. Nota-se ainda um objeto azul serpenteando na parede, no cantinho da copa: são medidores de leite em pó infantil que, empilhados e encaixados, formaram um coisa linda de ver, um móbile curvilíneo, um pedacinho de uma história: Helena, a filha da artista, quando ainda bebê, teve alergia ao leite materno, e do leite em pó que o substituiu restaram as latas, transformadas em floreiras e outras coisas, e os medidores, agora unidos nesse objeto, a serpente azul suspensa no ar, contando dias, dias de uma vida que segue em frente.

Para ela, todos esses objetos não são fontes diretas para o seu trabalho: são sim, conforme articulamos, atalhos para uma memória que tem muito para expressar: até mesmo por meio dos medidores de leite em pó. É um afeto, uma coisa riquíssima, uma relação estética que se dá o tempo todo com as coisas.

A pintura é seu ponto de partida: ora cobrindo telas, ora pintando grandes áreas de alvenaria. A pintura de hoje vale-se de novos materiais, de restos, de colagens, de tecidos, de papéis, em tamanhos variados, dos murais enormes vistos a longa distância até as pequenas pinturas, intimistas, para serem vistas de perto. Podem ser multicores, tom sobre tom, vale-se das possibilidades sensoriais que nos permitem a cor ou a ausência dela. Podem estar dentro das galerias ou museus, ou nos muros e viadutos, onde, sem quaisquer mediadores, alcançam olhares diversos. Como a própria artista observa: “As referências pessoais, fundadas nas experiências individuais, e as referências culturais, nascidas no convívio com a cultura de seu entorno, direcionam o poetizar, fruir, conhecer arte, levando-nos a fabricar sentidos, significações que atribuímos ao que estamos observando. Quanto mais referências tivermos, mais e diferentes as possibilidades e perspectivas para análises e interpretações” (MARTINS et al., 1998, p. 22 apud RUAS, 2005, p. 56). Ana Ruas produz pinturas, objetos, instalações, toda criação para ela é bem-vinda.
           
Educação do sensível: em busca da liberdade para criar

 Ana Ruas desenvolve o projeto “Educando o olhar”, que inclui cursos para crianças e de capacitação para professores de arte; e, ainda, oferece atividades de produção e discussão artísticas para profissionais de diferentes áreas, além de produzir suas obras.

A preocupação com a educação para o sensível permeia a vida da artista desde sua infância quando começou a questionar sobre o que seria de fato o “desenho livre” e ficou clara a sua necessidade de encontrar seu caminho diante da produção artística, livre dos moldes, das amarras que a impediam de se expressar no mundo como indivíduo e ser criador. Sobre sua infância, diz: “Os objetivos das aulas de artes não eram claros; portanto, não propiciavam referências e perspectivas necessárias à percepção criativa das coisas do mundo. Aulas mais objetivas e dinâmicas certamente teriam me proporcionado a liberdade que eu buscava. O medo não se justifica pela indecisão quanto à temática a ser abordada, mas sim pela falta de sincronia entre o pensamento pedagógico e a ação educativa”. (RUAS, 2005, p. 55).

A tomada de consciência quanto às dificuldades metodológicas no ensino da arte resultou em uma busca pela construção do conhecimento a partir da observação direta, e na compreensão de que a liberdade para criar nasce do olhar de cada aprendiz. Tudo isso fez com que Ana Ruas buscasse empreender novas formas de ensinar: “Atualmente, ao ensinar arte, eu busco uma linha de trabalho que me distancie dos equívocos de meus professores do ensino fundamental. Tomo como exemplo outros professores que, de maneira positiva, ensinaram-me a ouvir, sentir, pensar, descobrir, exprimir e fazer arte, partindo da observação e do estudo dos elementos da natureza e da cultura. A análise, a reflexão, a transformação consciente e reflexiva indicaram-me o caminho da liberdade, pelo qual, um dia, a professora não soube me conduzir”. (RUAS, 2005, p.55-56).

Decidida a ensinar arte de modo eficaz, quando era professora do Metropolitano Instituto de Educação e Cultura de Campo Grande, MS, em 1999, em comemoração ao Centenário de Campo Grande, MS, Ana Ruas propôs uma atividade de observação e desenho das arquiteturas de nosso centro histórico com suas casas, ao estilo Art Déco, trazido pelos imigrantes que vieram com a rodovia. Desse trabalho resultou uma atividade lúdica de pintar algumas fachadas. A experiência provou que é possível envolver pessoas em projetos artísticos a partir de seus próprios universos e interesses. Hoje, Ana Ruas tem uma proposta de educação para o sensível que vem ajudando pessoas a ver o mundo pela ótica da criação, em seu ateliê, bem como desenvolve projetos que interferem diretamente na imagem da cidade e na relação dos transeuntes com ela.
 
A participação coletiva, o espaço da cidade e a arte

Ana Ruas tem grande interesse por intervenções urbanas e site specific, termo relativo às obras elaboradas especialmente para um lugar cujos elementos dialogam com o meio circundante.

Aliando a pintura à idéia de intervenção e mesmo tangenciando o conceito de site specific, Ana Ruas tem proposto trabalhos de grande relevância, como o projeto que apresentou ao Fundo de Cultura de Mato Grosso do Sul. O projeto “A Cor das Ruas” foi realizado entre 2001 e 2004, com 53 bairros envolvidos e 720 adolescentes participantes, totalizando 11.520 metros quadrados de pintura sobre alvenaria. Para Margarida Marques, “é um trabalho que realmente contempla a inclusão social”. Ana Ruas é uma artista capaz de levar seu trabalho às pessoas, onde o público está. Segundo Humberto Espíndola (2002), ela integra uma corrente de artistas que compartilha de uma visão socializante da arte. Ele acredita que o artista deve ser um agente modificador da sociedade, não só por sua obra individual, mas também por suas ações e interferência nos grupos passiveis de seus benefícios enriquecedores (ESPÍNDOLA, 2002).

Ana Ruas vem articulando alguns de seus trabalhos ao coletivo, como no Projeto “A Cor das Ruas”. Com ele, a artista levou jovens das comunidades que receberam a proposta de se envolverem de maneira riquíssima, em tom de troca. Para Margarida Marques, fez jus ao apoio que recebeu. Esta é Ana Ruas, que, durante seis meses, nos mais recônditos locais, realizou em parceria com jovens, os quais ela considera como “meus alunos”, 26 murais, perfazendo 8.350 metros quadrados, que mudaram a cor e a cara de bairros e instituições, resgatando figuras locais, que, de alguma forma, se tornaram importantes àquelas comunidades e que de quebra amou cada minuto, empolgou-se e ficou tomada de emoção, apresentando, para finalizar, um relatório de trabalho invejável (MARQUES, 2001).

Além de perpassar a questão da inclusão social, o trabalho de Ana Ruas, com seus murais espalhados pela cidade e especialmente o projeto “A Cor das Ruas”, interpela também outra questão bastante presente e relevante nas discussões contemporâneas: a cidade. Sua existência, sua significância como lugar de nossas produções intelectuais, afetivas, arquitetônicas, nosso lugar de ser, de nossas vivências complexas como seres produtores e usuários do espaço. Não é de hoje que se discute o caráter crítico e questionador da obra de arte no espaço da cidade, entendida como “Arte Urbana”. Há algum tempo a obra “Tilted Arc” (1981), do artista americano Richard Serra, representou uma grande cisão na cidade de Nova York ao ser instalada na Federal Plaza, sendo objeto até mesmo de ações judiciais. A obra, uma gigantesca estrutura de aço com curvas, corta de fora a fora uma praça. Transeuntes e autoridades passaram a discutir sua pertinência, a possibilidade de ela permanecer ou não na cidade. Ao atravessar a praça, era possível perder-se dentro daquela estrutura que acortinara o entorno, o redor. Público e privado se misturam, o espaço é público, ou deveria ser, a rua, lugar público por excelência; mas os interesses são privados, a escultura acabou sendo removida em 1989. O tema tornou-se texto integrante do estudo de Rosalyn Deustche, “Evictions” (MIT PRESS, 1998) - cuja tradução seria algo como “ordens de despejo”, e no livro a autora trata por meio de exemplos de como a proposição artística pode interferir ou propor reflexões sobre o espaço da cidade, o público, o privado.

Para Menegazzo (2001), poucas vezes temos a oportunidade de pensar a cidade como instituição social, como espaço que recebe, abriga e provoca o encontro das pessoas e o seu conhecimento. A cidade é o espaço de identificação e de integração (ou pelo menos deveria ser). Em alguns momentos, porém, ela é agredida, como também seus cidadãos, pela ausência de planejamento urbano e arquitetônico, e pela especulação imobiliária que supera, por meio da destruição e da poluição visual, qualquer limite para conservação ou preservação de áreas, gerando o chamado "caos urbano". Como pensar, nesse contexto, a questão estética? É plausível? Pode o cidadão fruir esteticamente o seu ambiente mais próximo? (MENEGAZZO, 2001) E ainda, para a mesma autora, Ana Ruas responde positivamente a essas questões.

Não se pode afirmar que as pinturas de Ana Ruas impeçam o vandalismo na cidade, no entanto, é possível dizer que o deleite e o apreço estético é algo inerente ao humano, e assim, as pinturas da artista em espaços públicos da cidade de Campo Grande, embora não possam agir de modo análogo ao policiamento urbano, imprimem um sentimento de preservação, e por sua beleza, pode-se supor, distanciam ações de vandalismo. Como coloca Espíndola (2002, p.1): “Eis, aí o mérito deste projeto: a resposta imediata da comunidade, o transeunte, o trabalhador, o desempregado, o casal de namorados, o pipoqueiro, a babá, o pai do aluno, todos gostam do belo”.

Dentro da cidade, as pinturas feitas por Ana e pelas comunidades seriam como oásis. Sua delicadeza e colorido evidenciam aspectos da cidade de que gostamos e também alguns de que não gostamos, e também nos indicam a possibilidade e a importância de intervir no meio urbano. Outras propostas da artista que interferem no espaço urbano são:

- “A Intervenção Pictórica Origami/2008 no Viaduto Nain Dibo”: Este viaduto apresenta placas de concreto com um espaço, formando uma fresta entre uma e outra. O que inicialmente parecia ser um problema acabou virando o tema da obra. A artista utilizou vários tons muito próximos do concreto, criando dobras com o uso do recurso da sombra, causando a ilusão de que ele era todo sextavado. As pessoas olham para a pintura e intrigadas buscam “desvendar” a ilusão ali conquistada pelo desenho e pintura;
- “Origami /2012 no Tapume da Brookflied”: Este trabalho faz parte do projeto Urban Gallery da Brookfield. Ana Ruas foi a décima segunda artista do Brasil convidada a participar do projeto. O tapume mede 92 metros quadrados, fica logo após uma curva em uma via rápida, a Via Park, em Campo Grande, MS. Muito além da pura inspiração, a artista se debruçou sobre cálculos para determinar o tempo de leitura da obra, que é de aproximadamente 15 segundos. Segundo ela: “Fiz um desenho simples, são dobras que começam pequenas e depois vão se abrindo, e uma linha vertical vermelha que costura toda a extensão do tapume. Novamente usei os recursos favoritos que costumo usar: sombra, luz e movimento”. A ilusão criada faz com que pessoas olhem para um pedaço da cidade para o qual comumente não olhariam caso a grande dobradura ilusória não estivesse lá;
- “Trilhos do Viaduto Euler de Azevedo”: De acordo com Ana Ruas, “A sombra projetada e desenhada na parede do viaduto é a sombra real do mês de dezembro, ao meio-dia. Não existe mais trem, nem mais esse trilho, ficou para mim o registro de um momento da história de Campo Grande”. Mais uma vez ela tece, com sua obra, um diálogo com a cidade, desta vez com sua história, deixando-nos ali a lembrança do que já foi e não será mais.
Em especial nessas obras diretamente relacionadas ao espaço urbano e público, Ana Ruas nos impele e nos oferece uma dimensão questionadora sobre nosso lugar e nosso papel na construção dele. Para Espíndola (2002), Ana Ruas, sem dúvida, compartilha conosco sua visão de civilidade e com suas ações pictóricas educa nossos jovens, tenta interceptar as pichações metropolitanas e a vadiagem com propostas de beleza, cor e fazer.

A importância dessas ações estéticas a que se propõe a artista está em propiciar a mais pessoas a oportunidade de viver, de participar da cidade, de sua vida, de sua construção como signo de quem somos, nós, que nela vivemos.

De seus trabalhos, Ana Ruas considerou importante citar, ainda: “A Intervenção Pictórica ‘Balaústre’/2004”, realizada no MARCO, e as séries acrílicas sobre tela “Garfos”/1996; “Era uma vez”/2008 e “Redes”/2009.

Para a artista, a arte “convida e provoca reflexões e discussões sobre muitos assuntos pertinentes ao ser humano”. Mas, acima de tudo, quando a arte convida o indivíduo a pensar sobre as sutilezas e sobre a poesia, considera encantador. Daí pode-se dizer que o ludismo de seu trabalho é enfim uma grande poética: a poética de tirar das coisas as cores, uma brincadeira que nos enriquece quando resgatada, uma sensação lúdica e alegre que a criança conhece, e que coisa boa é tê-la de volta quando já amadurecida!
 


Referências

ESPÍNDOLA, Humberto. A cor das ruas. Campo Grande, MS, 2002.
MARQUES, Margarida. O projeto a cor das ruas. Campo Grande, MS, [s.d.].
MENEGAZZO, Maria Adélia. A obra de Ana Ruas. Campo Grande, MS, jul. 2011.
Nas ruas com Ana. Texto para o catálogo A cor das Ruas. Campo Grande, MS, 2001.
RUAS, Ana. Uma experiência de produção criativa. Revista Pátio, ano 9, n. 35, p. 54-57, ago./out. 2005.

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