Reconfigurando a cidade
O contemporâneo na arte revela um posicionamento do artista com o espírito de seu tempo, de sua época. Neste sentido, a arte põe as coisas do mundo em diálogo constante e não há como desvinculá-la de uma poética do cotidiano. A variação dos suportes, o corpo como linguagem, as relações intermidiáticas e as instalações são apenas algumas peças desse diálogo em nossos dias, apontando para uma tradição que já não é mais, apenas, aquela clássica sobre tela.
Estabelecer novos ângulos para se visualizar a cidade tem sido o caminho adotado por Ana Ruas, reconfigurando espaços urbanos, principalmente em Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul. Valendo-se da própria cidade como suporte, interfere no cotidiano das pessoas sem que elas se dêem conta disso imediatamente. Aos poucos, a artista vai envolvendo pedestres, motoristas, guardas de trânsito, instituições dos mais diferentes níveis, todos voltados para a consecução da obra. Movimenta, assim, um verdadeiro batalhão de trabalhadores, os primeiros a enfrentar a resistência das superfícies muitas vezes deterioradas pelo tempo e pelo homem.
É necessário ressaltar que se o suporte deixou de ser o clássico, a técnica de representação remete a ele. O desenho de perspectiva e a projeção das sombras ampliam ou encurtam distâncias, mas sempre num jogo com o observador onde a palavra-chave, como não poderia deixar de ser, é ilusão.
No entanto, Ana Ruas joga com a paixão humana pelo Real, afirmada pelas circunstancias que transformam tudo em fatos, documentários e arquivos, principalmente em nossos dias. Ana transforma o real em simulacro projetando sombras impossíveis e, no entanto, plausíveis no contexto em que são desenhadas e pintadas. Então, ao mesmo tempo em que celebra as aparências com estímulos visuais harmônicos, provoca novas leituras do cotidiano, na medida em que relativiza espaços, desautoriza hierarquias e modifica a relação do observador com a cidade. Todos os cantos são passíveis de intervenção.
Ao passar pela Avenida Afonso Pena, em Campo Grande, uma das vias que cortam a cidade de ponta a ponta, é quase impossível não se notar os vendedores de redes que as expõem numa trama invejável de aproximação de culturas. Sensível a esta presença, Ana Ruas leva os redários para um outro espaço, o do Centro Cultural Octavio Guizzo (2009). Replica no espaço fechado, as contradições da rua, os embates entre o comércio formal e informal, investindo na dificuldade da trama, no contraste das cores, das linhas e dos ângulos. Tece, dessa forma, no emaranhado das redes o espaço do descanso, resumo e recompensa do dia-a-dia atribulado.
A arte milenar do origami, que dobrando um pedaço de papel cria formas inesperadas de leveza e síntese, foi o ponto de partida para a artista recobrir viadutos. A forma integral, dobrada e tridimensional, assume novamente a bidimensionalidade do papel ao ser pintada sobre uma superfície. No entanto, não apenas será exibida a forma total do pássaro, por exemplo, como também fragmentos da dobradura – asas, bicos, cujos sentidos permanecerão sempre em aberto. Estas intervenções vão conferindo, assim, uma identidade poética (o viaduto dos origamis) além daquela indicada pelas placas de localização (Viaduto Naim Dibo), tornando a cidade mais humana no já presente caos de nosso contexto urbano.
No espaço interior do MARCO, o Museu de Arte Contemporânea, de Campo Grande, Ana Ruas provocou o encontro entre a tradição, o moderno e o contemporâneo numa obra realizada na rampa-espiral que dá acesso ao piso inferior do edifício. Materializou a balaustrada da Morada dos Baís (durante um período de tempo, Pensão Pimentel), um edifício antigo da cidade, hoje um centro cultural, nas linhas puras da arquitetura de referência modernista que caracterizam o museu. O mesmo procedimento empregado na Pinacoteca de Maceió, cujo espaço interior foi ampliado pela inserção de colunas com capitéis rebuscados, emprestados do edifício da Associação Comercial daquela cidade, de concepção neoclássica. Em ambas as obras, a reverência ao discurso da tradição histórico-artística implica e redimensiona as marcas históricas da construção civil pública e, assim, uma estética do afeto se interpõe neste diálogo.
Desde 1997, Ana Ruas deixa suas marcas pela cidade, propondo outros percursos visuais, novos encontros com a paisagem. Nos viadutos, nos antigos trilhos do trem que cortavam a cidade, no “camelódromo”, no horto florestal, nos muros das escolas, nos bairros, nas vias expressas, em Campo Grande, em Porto Alegre, em Maceió, por todos os lugares, os desenhos e as pinturas de Ana Ruas interferem colorindo o cotidiano da cidade. Por outro lado, suas obras também recebem as marcas do tempo, da destruição natural do ambiente, da ocupação indiscriminada da cidade. No entanto, qualquer que seja a proposta, acarretará sempre uma diferença na nossa relação prosaica com o espaço urbano, dando-nos conta de que o cotidiano pode ser também uma experiência modulada criticamente, desdobrando as possibilidades de percepção estética da cidade.
Maria Adélia Menegazzo/2010
Crítica de Arte
UFMS